terça-feira, 22 de abril de 2014

Relato de Viagem Bh/SP


O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: Esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, Sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. (Guimarães Rosa)

“A ponte é o que une, e não o que separa”. Ouvi a frase, de um dos Poetas Ambulantes, quando passávamos por debaixo da ponte estaiada, na marginal Pinheiros. Cenário da Rede Globo, de todas as tardes, ela separa. De um lado, ficam os grandes edifícios, e a contracepção de renda sem precedentes. Do outro lado, ficam saraus. Ponto. Ficamos nós de ponto em ponto proclamando poesia; ficam os bares cheios de almas pra salvar; ficam vielas e lonjuras com estreitados aplausos, não fracos, nem cansados, para @ poeta(iza) que acaba de recitar. “Além da ponte”, tem música, no Espaço Comunidade. Além da ponte, há seres de outro planeta, com uma cabeça a prova de mentiras. Não fogem palavras para desmascarar os engarrafamentos, as individualidades (quando a cidade é coletiva, de coletivos), a dificuldade que o amor tem de chegar ao outro lado da cidade. Parece não haver amor em SP. Parece. Não faltam palavras pra descrevê-lo; para reafirmá-lo, como uma flor que se afirma no asfalto. Ele (r)existe apesar da descrença no humano, que também precisa ser feito de pedra, como a cidade que o rodeia; espelha-se nela para sobreviver como igual. O amor está. O amor é. O amor vem nas palavras que saem dos olhos da cozinheira, dona Maria no metrô, com o filho no colo, que recita um lembrado de Drummond, baixinho, sem querer chamar atenção, mas com a boca no prêmio: um livro da Sinhá.

O dia “Um” em São Paulo dos Saraus, nos levou ao Suburbano Convicto. Sarau organizado pelo Buzo e Tubarão, comparsas e anfitriões de peso. Quem nos levou, e ciceroneou nosso caminho foram os amores Carol e Tiago Cabeça (daqui pra frente o leitor deverá ouvir muito essa palavra, “amor”, quando cito nomes como esses). Muitas trocas e parceiros no sarau de aniversário da livraria, que estampa muitos títulos de poetas e escritores periféricos. Não poderia faltar o lançamento mais que especial do livro de coletânea dos Poetas Ambulantes. Fotos lindas das saídas e entradas da poesia pelos transportes coletivos da cidade. Nossa condutora, tutora intelectual e companheira de luta, Débora Del Guerra se propõe a nos alimentar da noite paulistana. “São Paulos os que te erguem, governador”, o nome Estadão me lembra o poeta Tico, Alex. Grande parte das camadas sociais, ali na madrugada, mastigando o sotaque que arrebenta com o “r”, quando os companheiros atendentes, agradabilíssimos e ávidos pela “caixinha”, gritam contentes “Sai mais um perrrrrnil”.

O dia Dois inicia com um encontro mais que agradável, fortuito, frutuoso e afetuoso no almoço com Daniel Minchoni e Debora Del Guerra. A conversa sela ideias compartilhadas sobre a forma que tem tomado a “tal” poesia contemporânea. Minchoni é um tipo visionário que não se limita em apenas apontar uma direção para a (re)criação artística. Ele está em peso (entendam-me...) em tudo que se propõe fazer. Admite-se um performer que dialoga com as cenas poéticas nas instâncias que articula. Sarau do Burro, Selo do Burro, edição e curadoria de vários livros, Slam (menor Slam do mundo, nano Slam e categoria pelé) tudo e um pouco mais nos fez saber. A conversa, ao longo das 4 horas que estivemos saboreando o almoço da Marcenaria, suscitou picos interessantes e nos propôs uma leve suspensão: O que deveríamos fazer em BH com essas ideias compartilhadas? Que ponte? Como unir nossas cabeças? Muitas coisas entre o trânsito de livros e poetas, aqui e lá, ficaram no “como”. Estamos digerindo um pouco ainda, peculiaridade dos mineiros, que come pelas beiradas e precisa entender como os paulistanos vão direto ao centro.

Finda a fome (insustentável) de ideias e, claro, do corpo-estômago, o dia Dois começa a denunciar nossa ansiedade. Via o brilho de responsa que o companheiro DW ressoava a caminho da Cooperifa. João, bem, João ainda um garoto prodígio daquela metrópole. Olhava tudo com a serenidade de quem já vivera ali anos a fio. Sem se preocupar nunca. Uma estranha tranquilidade que invejo. Eu, bem, eu era um retornado. Lembrei-me do livro que deu origem ao nome do Coletivoz “A Floresta em Bremerhaven”, de Olga Gonçalves. Conta a história dos “retornados”. Pessoas que saem de Portugal em busca da ascensão financeira na Alemanha, e retornam a seu país, numa “outra” condição. De empregados, passam a proprietários de uma pensão. É um livro que dá voz aos coletivos; à margem. Da primeira vez, há quase seis anos, fomos Eu, Kaká, Jessé e Ricardo, meu irmão. Voltamos com a missão de criar o Coletivoz. E agora? O que criaremos nessa segunda visita? Mais uma vez, Carol e Cabeça vieram nos pegar. Começamos a atravessar a ponte. A Vila Madalena e seu luxo ignóbil, suas esquinas charmosas e os cães de rua que não há, vão ficando pra trás. As butiques lindas, os restaurantes caros, não menos lindos, os estrangeiros agradáveis e leves do hostel e alguma classe média daquela savassi tresloucada paulistana não sabem o que há para “além da Ponte”. A zona sul vai chegando, junto com a perfeita confusão da periferia. A Bremerhaven distante, que abriga seus retornados. Aqueles que saem em busca de... e voltam a seus lares com... retornados.
No dia Dois fomos Eu, João Paiva, e Eduardo DW, abraçados pela companhia das pessoas amor que já estavam na festa. Ni Brisant, Thiago Peixoto, Eduardo Dias, jeferson Santana, Cabelo, Bruno Marselha. O Sérgio Vaz fez as honras da casa e nos apresentou. Poetas inter[calaram] silêncios, enquanto aguardávamos... a ansiedade baixar, e nossa vez de recitar. De nós três de BH, João foi o mais ovacionado. Arrepiei-me de orgulho do menino prodígio. Senti toda a energia do mundo quando DW tomou o Mic. Era feroz como um tigre, e como todo tigre, não usou o Mic. Não mais tarde, o sarau que completava 13 anos de (r)existência me chamou. Não consegui agradecer com sangue os Sobrenome Liberdade e Poetas Ambulantes. O tempo era pobre de silêncios. Minha fala curta. Fotos, beijos, companheiros de luta se encontrando ao final, a praça proibida, a volta pra casa e empanadas deliciosas e as leves considerações de Debora Del Guerra e Marina em nossa companhia. Só êxtase em agradecimentos.

O dia Três, e cismo a iniciar os dias com letra maiúscula porque foram “nomes”, esses dias em nossa semana. Têm certidão de (re)nascimento na caminhada do Coletivoz e Cabeça Ativa. Rumo ao novo. Era dia da saída com os Ambulantes da poesia. Na catraca da estação Faria Lima do metrô, uma oração poética e emocionante recobrava os nossos esforços, e fazia lembrar por que estávamos ali. 25 poetas, entre eles, ávidos e implacáveis Gracco Liveira, Victor Rodrigues, Lu’z Ribeiro, Cuca de Sabre com quem dividi maior contato no durante. “Uma vez poetas ambulantes, e nada mais será como antes!” Essa era sempre a ressalva depois de nos lançarmos à poesia dentro dos coletivos. Lembrei-me do teatro popular da Cia. União do Olho vivo e ensinamentos de Cesar Vieira. O público-povo, ou o povo-público estava ali, esperando. E ele está ali todos os dias, distantes da realidade que os cercam. Cansados do dia e das distâncias, sem tempo pra poesia. Nossos teatros, muito das vezes avolumam-se longe deles. Não os querem. São apenas trabalhadores. Ali no trem, metro ou ônibus são cidadãos, como nós poetas. Estamos juntos na mesma condição. Condução que nos levou até o sarau irmão, o Sobrenome Liberdade. Não menor ansiedade; não menor desejo; não menor alegria de ver os justos Bruno e Cabelo encenando e fazendo valer teatro; Minchoni no funk espetacular, e Michele no poema coração; Ni Brisant como maquinista afoito e carinhoso; Maníssimo Ril que me fez chorar de novo, com o troco; Cabeça e Thiago Peixoto na dobra rimada. O doce das meninas Sinhá, Mel, Mari, Pri, Loredana, e tantas outras parceiras de revelações fortes, também contundentes como a impressionante Lu’z Ribeiro me fez subir ao palco, mais elevado do que quando cheguei. Mais tarde, no ônibus essa mesma mulher forte e negra de luz venceu uma batalha histórica contra o machismo dentro do ônibus. Rimou seu ódio com a elegância de uma guerreira, para desbancar com poesia, um degenerado filho da puta, que se arriscou não entender em que mundo estamos, quando depreciou, em falas chulas, sua “mulher objeto”. Mais uma vez senti que a poesia vale a pena. Não é todo dia que ela vale tanto. Obrigado Lu’z, por ser uma mulher dentro do ônibus na madrugada. O final da linha era o Sintonia, baile Black, e cheio de energias dançantes. Estavam, agora, em sintonia, mente e corpo.

O dia Quatro foi diacrônico. Bruno Marselha nos serviu de condutor, ponte, até o sarau Verso em Verso. O Espaço Comunidade, comandado por Diko e seus parceiros é uma casa de arte pra nós. Já na subida na favela limpa e organizada do Monte Azul, reparei nos cachorros e fiz um verso: “Os cachorros cambaleantes dessintonizam as ruas”; ou “os cães cambaleiam a rua”; ou ainda, “os cães deixam as ruas cambaleantes”. Sarau aconchegante, plantas no espaço, manjericão cheiroso à porta de entrada. Outras plantas e aromas vieram das palavras. Muitos poetas e lançamentos, como de costume. Afiancei-me ao poeta Casulo, de quem trouxemos um livro no escambo com cd’s da Corte. Funileiro poeta, dispensou-nos atenção e apreço. Diko também se aprochegou e humanizou com os mineiros.

Atravessar a ponte de volta não foi fácil. Ônibus não havia, quando houve, nós não havíamos pra ele. Fica em nós um coração do tamanho do mundo do companheiro Jefferson Santana, que esperou e cuidou de nós até o “haver”. Obrigado Jefferson Alegria, companheiros se fazem em qualquer madrugada fria.
O dia Cinco foi de espera. Espera da efervescência dos últimos dias passar; espera da feira, que se armou diante do hostel, acontecer e apaziguar minha nostalgia por pastéis e temperos; espera por dias de luta nas semi-distâncias de Belo Horizontes. Esperamos a despedida feliz dos amigos que foram nos buscar: Carol, Cabeça, Thiago Peixoto, Cabelo, Bruno e, na rodoviária, ainda, Eduardo Dias, Michele e Jefferson Santana.

A volta foi de descanso. Nada de corpo, nada de vozes, nada de poesia. Poucas risadas, tensão de chegada, reconhecendo o estranhamento alheio dos parceiros, irmãos ali exaustos. Somos anônimos esgotados pela distância. Não há poesia. Lembro-me com angústia do companheiro bahia, atendente da lanchonete que almoçamos no último dia. Quase humilhado pelo patrão por um erro de comunicação. Falamos de poesia, ele de almoço; falamos de liberdade e suspensão da vida, ele de servir bifes. Não há comunicação. A poesia ainda está muito distante de ser útil. Ela não serve a todos, só a quem ela escolhe pra servir.

À luta, à voz!