O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim:
Esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, Sossega e depois desinquieta. O que
ela quer da gente é coragem. (Guimarães Rosa)
“A ponte é o que une, e não o que
separa”. Ouvi a frase, de um dos Poetas Ambulantes, quando passávamos por debaixo
da ponte estaiada, na marginal Pinheiros. Cenário da Rede Globo, de todas as
tardes, ela separa. De um lado, ficam os grandes edifícios, e a contracepção de
renda sem precedentes. Do outro lado, ficam saraus. Ponto. Ficamos nós de ponto
em ponto proclamando poesia; ficam os bares cheios de almas pra salvar; ficam
vielas e lonjuras com estreitados aplausos, não fracos, nem cansados, para @
poeta(iza) que acaba de recitar. “Além da ponte”, tem música, no Espaço
Comunidade. Além da ponte, há seres de outro planeta, com uma cabeça a prova de
mentiras. Não fogem palavras para desmascarar os engarrafamentos, as
individualidades (quando a cidade é coletiva, de coletivos), a dificuldade que
o amor tem de chegar ao outro lado da cidade. Parece não haver amor em SP.
Parece. Não faltam palavras pra descrevê-lo; para reafirmá-lo, como uma flor
que se afirma no asfalto. Ele (r)existe apesar da descrença no humano, que também
precisa ser feito de pedra, como a cidade que o rodeia; espelha-se nela para
sobreviver como igual. O amor está. O amor é. O amor vem nas palavras que saem
dos olhos da cozinheira, dona Maria no metrô, com o filho no colo, que recita
um lembrado de Drummond, baixinho, sem querer chamar atenção, mas com a boca no
prêmio: um livro da Sinhá.
O dia “Um” em São Paulo dos
Saraus, nos levou ao Suburbano Convicto. Sarau organizado pelo Buzo e Tubarão,
comparsas e anfitriões de peso. Quem nos levou, e ciceroneou nosso caminho
foram os amores Carol e Tiago Cabeça (daqui pra frente o leitor deverá ouvir
muito essa palavra, “amor”, quando cito nomes como esses). Muitas trocas e
parceiros no sarau de aniversário da livraria, que estampa muitos títulos de
poetas e escritores periféricos. Não poderia faltar o lançamento mais que
especial do livro de coletânea dos Poetas Ambulantes. Fotos lindas das saídas e
entradas da poesia pelos transportes coletivos da cidade. Nossa condutora,
tutora intelectual e companheira de luta, Débora Del Guerra se propõe a nos
alimentar da noite paulistana. “São Paulos os que te erguem, governador”, o
nome Estadão me lembra o poeta Tico, Alex. Grande parte das camadas sociais, ali
na madrugada, mastigando o sotaque que arrebenta com o “r”, quando os
companheiros atendentes, agradabilíssimos e ávidos pela “caixinha”, gritam
contentes “Sai mais um perrrrrnil”.
O dia Dois inicia com um encontro
mais que agradável, fortuito, frutuoso e afetuoso no almoço com Daniel Minchoni
e Debora Del Guerra. A conversa sela ideias compartilhadas sobre a forma que
tem tomado a “tal” poesia contemporânea. Minchoni é um tipo visionário que não
se limita em apenas apontar uma direção para a (re)criação artística. Ele está
em peso (entendam-me...) em tudo que se propõe fazer. Admite-se um performer
que dialoga com as cenas poéticas nas instâncias que articula. Sarau do Burro,
Selo do Burro, edição e curadoria de vários livros, Slam (menor Slam do mundo,
nano Slam e categoria pelé) tudo e um pouco mais nos fez saber. A conversa, ao
longo das 4 horas que estivemos saboreando o almoço da Marcenaria, suscitou picos
interessantes e nos propôs uma leve suspensão: O que deveríamos fazer em BH com
essas ideias compartilhadas? Que ponte? Como unir nossas cabeças? Muitas coisas
entre o trânsito de livros e poetas, aqui e lá, ficaram no “como”. Estamos digerindo
um pouco ainda, peculiaridade dos mineiros, que come pelas beiradas e precisa
entender como os paulistanos vão direto ao centro.
Finda a fome (insustentável) de
ideias e, claro, do corpo-estômago, o dia Dois começa a denunciar nossa
ansiedade. Via o brilho de responsa que o companheiro DW ressoava a caminho da
Cooperifa. João, bem, João ainda um garoto prodígio daquela metrópole. Olhava
tudo com a serenidade de quem já vivera ali anos a fio. Sem se preocupar nunca.
Uma estranha tranquilidade que invejo. Eu, bem, eu era um retornado. Lembrei-me
do livro que deu origem ao nome do Coletivoz “A Floresta em Bremerhaven”, de
Olga Gonçalves. Conta a história dos “retornados”. Pessoas que saem de Portugal
em busca da ascensão financeira na Alemanha, e retornam a seu país, numa
“outra” condição. De empregados, passam a proprietários de uma pensão. É um
livro que dá voz aos coletivos; à margem. Da primeira vez, há quase seis anos,
fomos Eu, Kaká, Jessé e Ricardo, meu irmão. Voltamos com a missão de criar o
Coletivoz. E agora? O que criaremos nessa segunda visita? Mais uma vez, Carol e
Cabeça vieram nos pegar. Começamos a atravessar a ponte. A Vila Madalena e seu
luxo ignóbil, suas esquinas charmosas e os cães de rua que não há, vão ficando
pra trás. As butiques lindas, os restaurantes caros, não menos lindos, os
estrangeiros agradáveis e leves do hostel e alguma classe média daquela savassi
tresloucada paulistana não sabem o que há para “além da Ponte”. A zona sul vai
chegando, junto com a perfeita confusão da periferia. A Bremerhaven distante,
que abriga seus retornados. Aqueles que saem em busca de... e voltam a seus lares
com... retornados.
No dia Dois fomos Eu, João Paiva,
e Eduardo DW, abraçados pela companhia das pessoas amor que já estavam na
festa. Ni Brisant, Thiago Peixoto, Eduardo Dias, jeferson Santana, Cabelo,
Bruno Marselha. O Sérgio Vaz fez as honras da casa e nos apresentou. Poetas
inter[calaram] silêncios, enquanto aguardávamos... a ansiedade baixar, e nossa
vez de recitar. De nós três de BH, João foi o mais ovacionado. Arrepiei-me de
orgulho do menino prodígio. Senti toda a energia do mundo quando DW tomou o Mic. Era feroz como um tigre, e como
todo tigre, não usou o Mic. Não mais
tarde, o sarau que completava 13 anos de (r)existência me chamou. Não consegui
agradecer com sangue os Sobrenome Liberdade e Poetas Ambulantes. O tempo era
pobre de silêncios. Minha fala curta. Fotos, beijos, companheiros de luta se
encontrando ao final, a praça proibida, a volta pra casa e empanadas deliciosas
e as leves considerações de Debora Del Guerra e Marina em nossa companhia. Só
êxtase em agradecimentos.
O dia Três, e cismo a iniciar os
dias com letra maiúscula porque foram “nomes”, esses dias em nossa semana. Têm
certidão de (re)nascimento na caminhada do Coletivoz e Cabeça Ativa. Rumo ao
novo. Era dia da saída com os Ambulantes da poesia. Na catraca da estação Faria
Lima do metrô, uma oração poética e emocionante recobrava os nossos esforços, e
fazia lembrar por que estávamos ali. 25 poetas, entre eles, ávidos e
implacáveis Gracco Liveira, Victor Rodrigues, Lu’z Ribeiro, Cuca de Sabre com
quem dividi maior contato no durante. “Uma vez poetas ambulantes, e nada mais
será como antes!” Essa era sempre a ressalva depois de nos lançarmos à poesia
dentro dos coletivos. Lembrei-me do teatro popular da Cia. União do Olho vivo e
ensinamentos de Cesar Vieira. O público-povo, ou o povo-público estava ali,
esperando. E ele está ali todos os dias, distantes da realidade que os cercam.
Cansados do dia e das distâncias, sem tempo pra poesia. Nossos teatros, muito
das vezes avolumam-se longe deles. Não os querem. São apenas trabalhadores. Ali
no trem, metro ou ônibus são cidadãos, como nós poetas. Estamos juntos na mesma
condição. Condução que nos levou até o sarau irmão, o Sobrenome Liberdade. Não
menor ansiedade; não menor desejo; não menor alegria de ver os justos Bruno e
Cabelo encenando e fazendo valer teatro; Minchoni no funk espetacular, e
Michele no poema coração; Ni Brisant como maquinista afoito e carinhoso;
Maníssimo Ril que me fez chorar de novo, com o troco; Cabeça e Thiago Peixoto na dobra rimada. O doce das
meninas Sinhá, Mel, Mari, Pri, Loredana, e tantas outras parceiras de revelações
fortes, também contundentes como a impressionante Lu’z Ribeiro me fez subir ao
palco, mais elevado do que quando cheguei. Mais tarde, no ônibus essa mesma
mulher forte e negra de luz venceu uma batalha histórica contra o machismo
dentro do ônibus. Rimou seu ódio com a elegância de uma guerreira, para
desbancar com poesia, um degenerado filho da puta, que se arriscou não entender
em que mundo estamos, quando depreciou, em falas chulas, sua “mulher objeto”. Mais
uma vez senti que a poesia vale a pena. Não é todo dia que ela vale tanto. Obrigado
Lu’z, por ser uma mulher dentro do ônibus na madrugada. O final da linha era o Sintonia, baile Black, e cheio de
energias dançantes. Estavam, agora, em sintonia, mente e corpo.
O dia Quatro foi diacrônico.
Bruno Marselha nos serviu de condutor, ponte, até o sarau Verso em Verso. O
Espaço Comunidade, comandado por Diko e seus parceiros é uma casa de arte pra
nós. Já na subida na favela limpa e organizada do Monte Azul, reparei nos
cachorros e fiz um verso: “Os cachorros cambaleantes dessintonizam as ruas”; ou
“os cães cambaleiam a rua”; ou ainda, “os cães deixam as ruas cambaleantes”. Sarau
aconchegante, plantas no espaço, manjericão cheiroso à porta de entrada. Outras
plantas e aromas vieram das palavras. Muitos poetas e lançamentos, como de
costume. Afiancei-me ao poeta Casulo, de quem trouxemos um livro no escambo com
cd’s da Corte. Funileiro poeta, dispensou-nos atenção e apreço. Diko também se
aprochegou e humanizou com os mineiros.
Atravessar a ponte de volta não
foi fácil. Ônibus não havia, quando houve, nós não havíamos pra ele. Fica em
nós um coração do tamanho do mundo do companheiro Jefferson Santana, que
esperou e cuidou de nós até o “haver”. Obrigado Jefferson Alegria, companheiros
se fazem em qualquer madrugada fria.
O dia Cinco foi de espera. Espera
da efervescência dos últimos dias passar; espera da feira, que se armou diante
do hostel, acontecer e apaziguar minha nostalgia por pastéis e temperos; espera
por dias de luta nas semi-distâncias de Belo Horizontes. Esperamos a despedida
feliz dos amigos que foram nos buscar: Carol, Cabeça, Thiago Peixoto, Cabelo,
Bruno e, na rodoviária, ainda, Eduardo Dias, Michele e Jefferson Santana.
A volta foi de descanso. Nada de
corpo, nada de vozes, nada de poesia. Poucas risadas, tensão de chegada,
reconhecendo o estranhamento alheio dos parceiros, irmãos ali exaustos. Somos anônimos
esgotados pela distância. Não há poesia. Lembro-me com angústia do companheiro bahia, atendente
da lanchonete que almoçamos no último dia. Quase humilhado pelo patrão por um
erro de comunicação. Falamos de poesia, ele de almoço; falamos de liberdade e
suspensão da vida, ele de servir bifes. Não há comunicação. A poesia ainda está
muito distante de ser útil. Ela não serve a todos, só a quem ela escolhe pra
servir.
À luta, à voz!